domingo, 14 de setembro de 2014

Cena Excluída #6

A história do Senhor das Almas é uma das minhas cenas preferidas em O Coração da Magia. Foi o tipo de coisa que eu nem inventei, nem planejei - foi como se as palavras se digitassem sozinhas, a história se desenrolando num filme na minha cabeça, tão óbvia e clara que nem parecia minha pra contar.
Ao longo dos anos e muitas revisões às que submeti CdM, esse sempre foi o trecho que permaneceu igual - ou quase. Algumas coisas se alteraram aqui e ali. Como, por exemplo, quem conta a história. Enquanto, na versão publicada que muitos de vocês leram, é Frida quem explica para Malena a raiz de seus poderes, na versão original a mesma fábula era repetida por Shiny. Conforme fui revisando, percebi que não faria sentido que a minha vilã preferida narrasse uma história da qual se orgulharia de maneira a pintá-la como má, sombria, e decidi readaptar: manter o discurso, mas mudar a personagem. Acabou funcionando muito bem!
Então, sem mais delongas, vamos à versão original deste capítulo...


"- Isso teria sido muito simples, não teria? – ela disse, suspirando – Eu teria dado minha própria alma em sacrifício se fosse simples assim. Mas vejo que você conhece a lenda sem conhecer a história.
- Perdão, eu cresci ouvindo coisas como “A Branca de Neve” antes de dormir.
Shiny riu. Naquele momento, eu sabia que a tinha conquistado. Ela diria qualquer coisa que eu quisesse saber. A começar pela história.
Ela se levantou e começou a circular a tenda. Um arrepio me percorreu a espinha, mas eu permaneci quieta, sentada tão parada quanto possível, esperando que ela começasse. Se a intenção era criar uma atmosfera misteriosa e até mesmo assustadora, ela estava conseguindo.
- Antes de qualquer bruxa nascer, houve um homem com grandes planos para a humanidade. – começou, e fez uma pequena pausa – Naquela época, a Igreja dominava pessoas e subjugava culturas, determinava quem era bom e quem era mau, e Deus era a maior preocupação na vida da maior parte das pessoas.
Eu não disse nada, apenas balancei a cabeça devagar, para demonstrar que estava acompanhando.
- Aquele homem não era mais especial do que os outros segundo as normas da sociedade. – prosseguiu – Ele não era casado, não tinha família, tinha um emprego simples e não era estudado. Contudo, era o único homem numa sociedade atrasada a considerar passos arriscados para sua fraca espécie. A considerar uma mudança.
“Esse homem não achava certo todo o poder possuído pela Igreja. Ele dizia a quem quisesse ouvir que, se Deus estivesse mesmo lá, Ele jamais concordaria com o comportamento daqueles que diziam ser seus fiéis. E que se ele, simples homem, fosse algum dia erguido a um nível de poder superior ao da Igreja e comparável ao de Deus, então ele agiria diferente e mudaria o mundo.”
Shiny contava a história de tal maneira que eu conseguia ver tudo com perfeição na minha mente. Eu via esse homem, via sua época, e conseguia sentir suas ambições. Tremi. Enquanto isso, ela continuava me levando em suas palavras.
- Então, uma idéia perfeitamente insana para muitos surgiu à sua mente: por que não pedir a Deus a dádiva necessária para poder mudar o mundo? Se Deus lhe desse o poder necessário para que ele fosse notado e ouvido, ele poderia corrigir a situação. Poderia colocar a humanidade de volta nos trilhos.
“Ele saiu em busca do lugar ideal para falar com Deus. Procurou em igrejas espalhadas pelo mundo, em lugares abençoados, procurou insistentemente pelo lugar onde Deus se escondia, pronto pra responder suas perguntas, pronto para atender ao seu pedido fervoroso. Quando percebeu que não havia lugar onde pudesse encontrá-lo, a última opção lhe passou pela cabeça: morte.”
“Uma facada no peito foi tudo o que foi necessário para levá-lo até a porta entre esse e o próximo mundo. Lá, ele encontrou Deus e fez seu pedido. Decepcionou-se com a resposta. Pois Deus lhe disse: ‘Não lhe darei tal poder, pois é preciso que a humanidade erre para que se corrija. Entendo seus bons motivos, mas não cabe a um homem reter um poder tão grande quanto o que me pede. Darei, contudo, sua vida de volta, para que em palavras e gestos possa alcançar aquilo que almeja.’”
“E Deus cumpriu sua promessa. Quando o homem acordou, nem faca nem sangue estavam à vista. Seu peito estava limpo e livre de cicatrizes. Seu coração, contudo, estava cheio. Cheio de raiva, de ódio de Deus por ter sido egoísta a ponto de negar o seu pedido. Cego de ódio, ele decidiu que viraria sua busca em outra direção. Se o bem não podia ser seu aliado, então o mal o seria.”
“Procurou até encontrar as portas do inferno, escondidas sob um manto de pecado numa cidade esquecida. Lá, o homem refez seu pedido, mas agora mudando sua visão. Deus queria que a humanidade se corrigisse sozinha? Então ele queria dificultar as coisas para Deus. Pediu ao Diabo que lhe desse um poder sem igual, o qual ele pudesse repassar para homens e mulheres escolhidos, que iriam, a partir daquele dia, servi-lo para toda a eternidade, e cujas almas e sangue iriam perpetuar o selo para todo o sempre.”
“O Diabo gostou da proposta, e aceitou o acordo, pedindo apenas em troca que o homem prendesse sua alma no fogo do inferno quando a morte lhe alcançasse. Deu a ele um poder inimaginável, enchendo-o de fúria e faíscas, selando o pacto com a garantia de que ele só morreria pelas mãos daquele que a magia não pudesse conquistar.”
Era como se eu tivesse entrado num transe. A tenda não existia mais, eu não existia mais. Minha mente estava flutuando na minha imaginação, mantida a mil pelas palavras e pela voz de Shiny enquanto ela narrava a história que parecia interminável.
“A partir daquele dia, o homem passou a ser o Senhor das Almas, aquele que decidia quem era ou não escolhido a se juntar ao seu exército. Ele escolheu a dedo a quem daria a dádiva da magia, selecionando apenas os fortes de corpo e espírito, sem medo das conseqüências de seus atos. Assim, ele juntou dezenas, centenas ao longo dos anos, indo de lugar a lugar, passando como uma tormenta, sugando até o último suspiro de bondade, e deixando seus destroços para trás.”
“Mas um dia, não se sabe onde, ele selecionou uma mulher e seu único filho. Suas almas eram tão fortes e seus corações tão pesados, que logo o Senhor das Almas percebeu que ali se escondia uma mina. Ele os convidou, e a mulher concordou, pedindo apenas que seu filho fosse deixado em paz. O Senhor das Almas deu a sua palavra de que nada aconteceria ao rapaz, mas uma vez que a mãe estava submetida, partiu em busca dele, quebrando sua falsa promessa.”
“O que ele não esperava contudo, era algo que nunca tinha visto ao longo de todas as décadas que haviam se passado. Quando ele partiu em busca do filho, a mãe deixou de lado os juramentos que sua alma havia proclamado, deixou de lado a magia e tudo o que havia aceitado, e se pôs a defender o filho. Queria salva-lo.”
“Quando argumentos não funcionaram, o Senhor das Almas decidiu tira-la do seu caminho, matando-a de forma impiedosa em frente ao próprio filho. O rapaz, contudo, não seria presa fácil. Tentou fugir, mas logo notou que o Senhor das Almas era demasiado forte para tentar competir. Ainda chorando a morte da mãe e ansiando por vingança, o rapaz surpreendeu o Mestre da Magia com uma dolorosa facada e seu peito.”
“Mas dessa vez, Deus não estava lá para lhe devolver a vida, e, seguindo a profecia do Diabo, o Senhor das Almas morreu e foi trancafiado no inferno, destruído pelas mãos da alma que a magia não podia conquistar, mas cujo coração pertencia à magia.”
Minha cabeça estava explodindo, e só percebi que havia fechado os olhos quando os abri e vi Shiny sentada de novo na minha frente. Ela parecia mais triste agora. Suspirou, evidentemente cansada após tamanha narrativa, e me olhou por um instante.
- Todos nós ainda servimos ao Senhor das Almas, mas ele está lá, trancafiado, esperando por alguém que resolva o quebra-cabeça que o trará de volta. – disse, mais baixo e mais devagar – Até a morte tem um revés, criança. E se o Diabo proclamou que o nosso Mestre apenas morreria pelas mãos daquela pessoa cuja alma e coração fossem tão únicos, então esta é a pessoa que deve morrer para trazê-lo de volta."

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