quarta-feira, 16 de julho de 2014

Cena Excluída #5

Apesar de eu ter algumas dezenas de trechos excluídos de O Coração da Magia, vergonhosamente só postei três até agora (clique aqui e veja quais foram). Então achei justo voltar com mais uma ceninha. Ou ceninhas.
O trecho a seguir é parte de um dos últimos capítulos do livro, e, logicamente contém uma porção gritante de spoilers. Portanto, se você não leu o livro, fique longe! E se você já leu, vai reconhecer a tragédia, embora perceba que muita coisa mudou de uma cena para a outra. Todo o final mudou. Excluir essa sequência para reescrevê-la de uma maneira mais impactante foi consequência de uma série de mudanças que eu fiz em CdM com o passar dos anos. Espero que tenha sido pra melhor :)


"Eu sabia que meu ritmo não era o bastante. Eu sabia que jamais chegaria a lugar algum correndo daquele jeito, então dobrei a esquina em direção ao hospital e corri ao terceiro andar. Meus pais estavam sentados na pequena salinha de espera, com uma aparência cansada.
- Mãe, eu preciso da chave do carro. – falei, depressa, tentando não gritar nem parecer muito desesperada. Ela ergueu a cabeça e me olhou com um ar desconfiado.
- Pra quê? – quis saber. Como eu ia explicar aquilo de uma forma coerente?
- Sam também sumiu de casa, eu preciso encontrá-lo, ta bem? – expliquei, e fui até a sua bolsa, remexendo. Ela me deu um tapa na mão, mas eu não parei – Eu não tenho tempo pra ser educada, me desculpa!
- Malena, o que está acontecendo? – meu pai exigiu, dessa vez. Achei a chave do carro e lhe dei as costas.
- Eu explico quando tudo estiver resolvido!
Sai correndo, deixando para trás seus protestos e todo o resto da minha calmaria. Peguei o elevador em direção ao estacionamento, e lá procurei pela minivan por entre os poucos carros estacionados. Não demorei a encontrá-la, então, pela primeira vez, a abri e assumi o banco do motorista.
Pus a chave na ignição e tentei me lembrar de tudo o que eu havia aprendido com meus irmãos um ano antes, quando ainda morávamos em Oklahoma. Liguei o carro. Certo. Soltei o freio de mão e tentei engatar a marcha ré, mas o carro morreu. Só então me lembrei do maldito pedal da embreagem. Liguei o carro de novo, pisei na embreagem, e enfim engatei o carro e acelerei.
Sai da vaga cantando pneus, e engatei a primeira. Acelerei, a despeito da pequena placa com o limite de velocidade e deixei o estacionamento para trás. Eu não levava nada comigo, a não ser a localização fixa no meu cérebro, para não ser esquecida. Ia xingando, baixinho, enquanto via a cidade correr à minha volta.
Como eu havia sido tão cega? Se agora eles estavam com Sam era tudo minha culpa, porque eu não havia percebido nada a tempo de protegê-lo melhor. Sam estava condenado – tremi só de pensar – e eu tinha pouco tempo para chegar à beira do rio Arkansas.
Dei uma risada sarcástica ao perceber como as coisas estavam tão programadas. No rio, eu enterrara o segredo que ele partilhou comigo, as duas mortes que eu carregava como um peso na consciência. Na Casa Azul, meu outro eu, Dorothi, havia passado parte de sua vida e condenado as irmãs. Agora, os ciganos habitavam o que restara da casa, e levavam Sam para a morte no local onde tudo havia terminado no ano anterior.
Toda a velocidade não parecia suficiente. Mil coisas percorriam a minha cabeça, mas nenhuma delas parava por tempo que bastasse para serem notadas. Sam, meu Sam, o que estaria acontecendo com ele? Eu chegaria rápido o bastante para salvá-lo de novo? Eu não sabia dizer.
Quando comecei a avistar a paisagem conhecida, o sol já estava se pondo. Tentei acelerar mais, mas a van rangeu e reclamou da minha tentativa, argumentando que era velha demais pra tanto esforço. Minhas mãos agarravam o volante com força, deixando marcas nas minhas mãos, fazendo doer os nós dos dedos.
O tempo se esvaia enquanto eu tentava atrasar o relógio. Ultrapassei minha casa nova, levantando poeira pelo caminho, vendo o rio chegar mais e mais perto. O sol parecia mergulhar, pouco a pouco, como se testasse a temperatura da água para ver se não estava fria demais.
Parei o carro tão logo alcancei a margem, descendo sem me preocupar em fechar a porta. Não havia ninguém à vista, até onde eu podia ver. Mas eu não estava errada, não podia estar – não havia tempo para erros ali. Comecei a andar, me afastando do carro, procurando por um sinal.
Foi aí que o avistei. Não quem eu estava procurando, mas o que, nesse momento estava sendo procurado por todos. Corri até ele, sem poder conter a raiva que eu sentia emanar de mim. Era tudo culpa dele. Era por causa dele, por ter sido tão imbecil que Sam estava entregue nas mãos do perigo agora.
Adam estava encostado numa árvore, parecendo zonzo e nocauteado. Me agachei ao lado dele, e ele não olhou pra mim. Estava tão nervosa que lhe desferi um tapa na cara, deixando uma marca no rosto e um ardor na palma da minha mão.
- O QUE VOCÊ FEZ? – eu gritei pra ele, sabendo que não ia adiantar. Chorava desesperadamente, chacoalhando-o, tentando fazer com quem olhasse pra mim – O QUE VOCÊ FEZ, SEU DESGRAÇADO?
Adam não disse nada, como eu sabia que faria. Ficou murmurando fragmentos incoerentes de palavras, como se estivesse cansado demais pra resolver. Dei-lhe outro tapa, e mais um, não me sentindo melhor em momento algum. Não era ali que eu devia estar. Eu tinha que continuar procurando.
Abandonei meu irmão, seguindo por uma corrida às cegas, percorrendo a margem do rio. Um turbilhão cercava a minha cabeça enquanto eu corria, imagens avulsas dos últimos meses, da minha vida com Sam. Tantos momentos, tantas coisas boas; eu não podia deixar que acabasse.
Fiz uma promessa a qualquer Deus ou Santo que quisesse me escutar naquela hora. Prometi que, se chegasse a tempo de salvá-lo, eu iria deixá-lo, levar comigo os problemas e o perigo que me cercavam. Se eu conseguisse salvá-lo, ele nunca mais teria que correr aquele risco novamente. Eu sacrificaria a minha felicidade para mantê-lo vivo se fosse preciso, sacrificaria minha vida, se necessário. Qualquer coisa.
As lágrimas molhavam meu rosto enquanto eu corria sem direção. Não havia nada lá, em lugar algum. Eu havia errado, eu havia falhado. Não iria conseguir proteger Sam, eu não poderia salvá-lo agora, sozinha como estava. Era tarde demais. Tropecei e cai de cara na terra, machucando a testa, ralando as palmas da mão. Senti o gosto da terra invadindo a minha boca, mas não encontrei forças pra levantar. Eu não tinha força para mais nada.
Não olhei quando senti mãos me pegarem com força e me prenderem a mim mesma. Continuei soluçando mesmo quando me ergueram e eu novamente entrei em movimento, carregada por mãos que eu sabia serem inimigas. Eu há muito já havia desistido – não havia nada que eu pudesse fazer. Sam estava certo naquela manhã quando dissera que o mundo ia acabar. O meu mundo ia acabar.
Somente abri os olhos quando, minutos mais tarde, o movimento cessou, dando lugar a burburinhos incompreensíveis.  Meus olhos doeram com a claridade que, notei, não pertencia ao sol, mas sim ao fogo de várias tochas iluminando fracamente o ambiente. O rio se encontrava logo atrás da multidão cujos rostos eu não via, mas sabia a quem pertenciam.
Novas lágrimas saíram quando meus olhos se acostumaram à claridade e eu vi a falsa tribo cigana disposta em circulo à minha volta. Eu estava parada, imóvel, de pé, bem no centro de toda aquela gente. Na minha frente, Sam estava deitado, com o rosto suado e a testa franzida, o corpo tão preso quanto o meu e disposto sobre uma cama de pedras.
Gritei o mais alto que pude, fazendo apenas um silvo agudo e irritante até pra mim. Ouvi risos à minha volta, e tentei me debater, sem sucesso. Estava tão bem presa que somente conseguia mexer meus olhos, fechando as pálpebras segundo a segundo, quando o excesso de lágrimas era demais para ser contido.
Vinda do nada, Shiny apareceu e nos rodeou, a mim e Sam, com a aparência de uma rainha radiante com a vitória de uma guerra. Ela havia vencido, eu podia ver – presa ali, eu não podia fazer nada. Podia apenas assistir e lamentar, mas ninguém iria me ouvir. Ninguém daria atenção aos meus urros ou ao meu desespero. Sam estava condenado e eu estava completamente indefesa
As pessoas à minha volta caíram em silêncio profundo quando Shiny tirou de dentro das vestes uma adaga grande e afiada. Tentei de novo me mexer, tentando alcançá-la. Queria poder me jogar no pescoço dela e rasgar sua carne, fazer jorrar dela o seu sangue imundo, fazê-la sofrer a dor que estava me causando, a dor que estava causando a Sam. Ela percebeu e riu de mim, um riso malvado, glorioso.
Shiny andou até estar atrás da cabeça de Sam, bem de frente para mim. Pude vê-lo tremer, e seus olhos apavorados, enfim, encontraram os meus. Naquela hora, eu pude ver o que ele estava pensando, tão alto e claro como se ele proferisse as palavras em voz alta.
“Você tentou. Eu te amo.”
Não, eu queria dizer! Não vai acabar desse jeito, você não vai morrer, não precisa ser assim! Não sei se Sam viu o lampejo de desespero ou o fio minúsculo de esperança nos meus olhos, não sei se ele pôde escutar na sua mente tão alta e claramente quanto eu ouvira na minha, mas eu desejei de todo o coração que sim. As lágrimas deixavam meus olhos furiosamente, impedindo que eu enxergasse direito e visse a compreensão em meus olhos.
Eu queria pedir perdão. Perdão por não tê-lo protegido como devia, perdão por ter trazido aquilo tudo para a sua vida. Ele não merecia. Ele estava melhor antes sem mim, sem saber o que havia de ruim de verdade no mundo, sem ter o perigo rondando sua porta à espreita de um momento de fraqueza. “Não foi sua culpa”, eu podia ouvi-lo dizer. Então um silvo rasgou o ar, e a voz se foi.
Gritei o mais alto que minha voz pôde fazer, lutei contra as forças desumanas que me prendiam, quando tudo aconteceu. A adaga cortou o ar em segundos, e logo estava ali, abrindo-lhe o peito, fazendo jorrar o seu sangue, deixando-o pálido, sem vida. Morto.
Ele não podia estar morto, não podia! Pensei na minha magia, tentei focalizá-la para poder me libertar, enquanto via luzes saindo do seu peito ferido em direção ao céu, como pequenos vaga-lumes que iam se juntando.
Nunca vou saber de onde veio a força que fez com que eu explodisse as barreiras que me prendiam, mas num instante eu estava imóvel e no outro eu caía de joelhos, solta. Ninguém me deteve. Não havia nada que eu pudesse fazer agora. Andei, tropeçando nas minhas pernas bambas, até Sam, de olhos ainda abertos, a adaga ainda fincada no coração.
Minhas mãos tremiam com força tal que eu não conseguia comandá-las. Vê-lo ali, estirado e morto, era pior do que qualquer dor que eu já sentira na vida. Parecia que o meu coração tinha sido perfurado, que era o meu sangue que estava deixando o meu corpo. Pus a mão sobre o cabo da adaga e a puxei, vendo o sangue dele escorrer, se esvaindo, me sujando. Os pontos de luz continuavam a voar, mas eu não dei atenção para ver para onde eles estavam indo. Shiny continuava parada na mesma posição, perto o bastante para que eu a atacasse, mas embora eu tivesse a arma comigo, não conseguia fazer outra coisa que não chorar.
Morto. Meu Sam estava morto. Como eu havia permitido, por que eu havia desistido? Se eu não tivesse sido tão ridícula, me deixando capturar daquela maneira, ou tão boba, não dando atenção para coisas cruciais como a reação de todos quando Sam estava por perto, ele poderia ainda estar vivo. Era minha culpa. Sem querer, eu o havia matado. Não havia volta agora.
O sol se pôs completamente e a bola de luz acima de mim brilhou como uma estrela. Sua luz foi se apagando, perdendo o brilho rapidamente, e então explodiu. Nada além disso – uma explosão de si mesma, uma rajada de vento momentânea, e então estava acabado.
Fora pra isso que ele morrera? Para uma explosão de luz qualquer, para nada? Me agarrei a ele com força, apagando todo o resto do mundo, chorando violentamente. Estava coberta do seu sangue quando ergui a cabeça, e não havia mais nada ali além de nós dois e uma tocha de fogo presa na terra, esquecida para trás.
A noite corria enquanto eu chorava. Mas não havia mais nada que eu pudesse fazer."

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi! Larissa sou muito teu fã parabéns por ter concluído o livro 2, olha achei muito emocionante esse foi o primeiro texto que mim fez chora eu amo o teu trabalho

Anônimo disse...

Oi! Larissa sou muito teu fã parabéns por ter concluído o livro 2, olha achei muito emocionante esse foi o primeiro texto que mim fez chora eu amo o teu trabalho