segunda-feira, 14 de maio de 2012

2º Capítulo de O Coração da Magia

Eu prometi, não prometi? E como vocês foram muito legais, me mandando vídeos e áudios de trechos variados de As Bruxas de Oxford pro novo vídeo de divulgação do livro, aqui está a minha parte da barganha. Se você ainda não leu o primeiro capítulo, leia aqui. Se você ainda não leu o Bruxas, nem pense em continuar lendo esse post! Espero que gostem e, claro, não deixem de comentar ;)

O Grande Encontro

- Yara, o que foi aquilo na hora do almoço? – não resisti perguntar, enquanto eu e ela andávamos em direção à minha casa. Yara parecia bem apreensiva, mas estava colaborando.
Ela mordeu o lábio, e vi seus olhos marejarem. Uma onda de pena me abateu, porque eu não sabia mais o que fazer por ela. Eu não podia tirar dela a dor do coração partido. Agora talvez fosse apenas uma questão de tempo. O que era uma droga, porque a única coisa de que minha amiga realmente precisava era algo que eu não podia dar.
- Eu não sei. – suspirou, e ergueu os olhos, como se pra fazer as lágrimas voltarem pra dentro – Eu só... – deu um riso sem humor pra si mesma – É ridículo, não é? Essa competição?
- Desculpe, mas é. – respondi, com toda a honestidade que me cabia. Passei meus cadernos pro outro braço e passei o braço livre pelos ombros da minha melhor amiga – Ei. Vai ficar tudo bem.
- Eu queria que passasse, entende? É fácil entender porque não deu certo, difícil é só...
- Entender que ele não sente mais?
Yara bufou. Meia dúzia de lágrimas já tinham escapado.
- É. – soltou, por fim.
- É por isso que hoje, eu e você vamos nos afundar nos números! – eu disse, tentando soar animada. Não parecia divertido nem pra mim. Ela riu, de qualquer maneira, então eu fui em frente – Podemos tomar sorvete enquanto você tenta me fazer entender... qual é mesmo o nome daquela coisa que a gente ta aprendendo?
- Equações com números fatoriais? – sugeriu, e eu sorri.
- Isso ai! Você vai entrar em coma depois de hoje!
Ela riu, e nós seguimos o nosso caminho.
Yara estava tão apreensiva quando chegamos e entramos em casa que era possível ler o medo estampado em sua testa, mesmo que ela tentasse esconder com uma expressão tranqüila. Imaginei como ela agiria se eu a levasse para o sótão, meu quarto, local onde o passado tenebroso daquela casa realmente havia se concretizado. Ela era uma pessoa sensível. Tanto que eu não conseguia entender como não tinha sentido a bruxa que há – havia – em mim.
Afinal, ela tinha medo de Kathi. Ela mantinha distância de todas as pessoas na minúscula Oxford que tinham alguma coisa a ver com toda essa história de bruxas. Yara deveria correr de mim também. Ou talvez ela só não sentisse porque eu não era realmente uma antes de reconhecer Dorothi em mim. Ou simplesmente porque eu não representava perigo.
A quem eu estava querendo enganar? Eu tinha matado duas garotas numa única noite. Eu representava perigo sim.
Nos sentamos na sala, onde Yara observava tudo com cuidado, como se esperasse que o bicho papão saísse de repente da lareira ou alguma coisa assim. Mamãe apareceu, vindo da cozinha, com um pano de prato nos ombros.
- Boa tarde, meninas! – exclamou, abrindo o sorriso que eu sempre via quando me olhava no espelho num dia feliz – Yara! Como vai?
- Tudo bem comigo, Sra. Gördon, e com a senhora? – Yara respondeu, educadamente e tentando fingir que não estava apavorada.
- Eu estou ótima! – respirou fundo – Precisam de alguma coisa?
Yara já ia dizer que não, obrigada, mas eu sabia exatamente do que ela precisava. E, de certa forma, eu também.
- Pode nos fazer um chá de camomila, mãe? – eu pedi, e mamãe assentiu, devagar.
- Claro. – concordou – Volto logo!
Mal ela saiu, Yara já estava me fuzilando enquanto pegava os cadernos.
- Não precisava dar trabalho pra sua mãe! – Yara afirmou – Eu já estou melhor!
- Não seja boba, é só um chá! – rolei os olhos – Minha mãe não vai morrer por causa de um chá!
Ela não parecia convencida. Mesmo assim, pegamos todos os nossos itens de estudo e começamos a operação Números Fatoriais!
Minha mãe voltou com o chá, e isso ajudou um pouco a acalmar os ânimos. Depois de meia hora, Yara já estava tão absolutamente entretida em tentar me fazer entender a matéria, que já tinha deixado de lado quase todo o seu medo sobre a casa – quase. Ela ainda olhava por cima do ombro de minuto em minuto esperando que algo pulasse em cima dela. Mas estava fazendo o possível para se manter calma.
Já estávamos naquilo a duas horas, e minha cabeça doía com o excesso de informação. Tinha repassado a matéria duas vezes, e estava fazendo pela terceira vez os exercícios que eu tinha errado. Yara estava comparando a minha prova com a dela – a diferença entre um A e um D eram gritantes e óbvias. Fui salva por breves segundos quando meu celular emitiu um alerta de mensagem.
Jantar aqui, hoje. Aniversário de casamento dos meus pais. Não aceito não como resposta.
Aquilo bastou pra que toda a camomila fosse imediatamente eliminada do meu sistema nervoso e eu começasse a suar. Hoje? Como assim hoje? Por que ele não tinha me avisado nada antes? Por que ele estava fazendo aquilo comigo?
- Malena, o que foi? – Yara percebeu. Acho que eu estava ficando meio verde; afinal, seria impossível ficar mais pálida.
- Não é nada. – respondi, mas minha incapacidade de piscar os olhos e minha voz atravessada na garganta rapidamente denunciaram o contrário. Yara pôs os livros de lado e pegou o celular. Leu a mensagem e me lançou um olhar de repreensão.
- Ainda essa história?
Yara sabia de parte dos fatos. Sabia que eu estava me recusando terminantemente a conhecer a família de Sam. Sabia que eu estava em pânico. Sabia que Sam queria muito que eu conhecesse seus pais. Só não sabia qual era o grande mistério por trás daquele drama todo.
- Você não entende. – falei, quase chorando. E ela não entendia mesmo. Nem Sam, por mais absurdo que pudesse parecer, entendia. Ele estava me levando direto pra boca do tubarão!
- Não entendo mesmo, porque você não me explica! – Yara me devolveu o celular, que eu peguei com mãos trêmulas – Você está sendo boba! Não tem do que ter medo! Os pais dele não vão te trucidar nem nada do tipo!
Não vão porque não sabem da verdade. Mas eu sabia da verdade. Eu estaria me trucidando sozinha.
- Aposto que você já enfrentou coisa muito pior que um jantar de bodas na sua vida! – ela continuou, e eu me segurei nesse pensamento enquanto ela falava.
E não era verdade, afinal?
Não sabia a que exatamente Yara estava se referindo – já que boa parte das coisas realmente difíceis e terríveis que eu tinha enfrentado na vida não era de conhecimento geral -, mas ela estava certa. Eu já tinha enfrentado coisa muito pior. Já tinha enfrentado preconceito, já tinha crescido com sete homens (contando meu pai) cuidando de mim, já tinha me mudado bruscamente, descoberto que era uma bruxa, feito feitiços, tirado vidas. Já tinha feito tantas coisas difíceis, já tinha enfrentado tantos momentos de medo, que dificilmente algo poderia me assustar.
Exceto a expectativa de me encontrar com duas pessoas que não sabiam realmente quem eu era, nem minha relação com o pior drama de suas vidas. Mesmo que, secretamente, eu tivesse, na verdade, os salvado. Eles não sabiam disso. Assim como não sabiam que eu tinha matado Megan.
Eu não acreditava nem por um segundo que estivesse sendo boba. Meu medo era real, e tinha a ver com culpa e muito remorso pela dor dos Goyle. Mas Yara estava certa, eu podia passar por isso. E antes agora do que quando não houvesse mais como adiar.
- Tem razão, né? – falei, devagar. Tive a impressão de que ela tinha me dado um sermão enorme, mas que eu não havia escutado uma palavra sequer. Mas só o fato de eu admitir que ela estava certa já fez Yara sorrir.
- Claro que tenho. – ela passou a mão carinhosamente pelos meus cabelos, com um olhar fraternal – Agora responda pra ele que está combinado, e crie coragem.
Coragem. Ia precisar de muito mais que coragem. Ia precisar de uma sorte que não era típica de mim.
Com os dedos trêmulos, respondi um simples “tudo bem”. Ia bastar. Tentei continuar estudando depois disso, mas simplesmente não funcionou. Eu tinha algo muito mais urgente com que me preocupar agora – o maior e menos ansiado encontro de toda a minha vida.

Mal consegui falar com Sam depois disso. Me sentia um pouco traída por ele ter me forçado aquele encontro de uma maneira tão brusca. Achava que ele, de todas as pessoas, entenderia porque eu precisava de tempo. Ao invés disso, estava me forçando a pular do penhasco, mesmo sabendo que eu estava apavorada com a altura. Uma tremenda facada nas costas.
Mesmo assim, eu não conseguia ficar brava com ele. A decisão estava tomada, e eu estava confiante de que não voltaria atrás. Minhas mãos suavam e meu coração batia forte só de pensar no que me aguardaria naquela noite. Na minha cabeça, eu ainda tinha formada aquela imagem louca de que eles me reconheceriam como assassina no mesmo instante em que eu aparecesse, e me expulsariam com tochas e forcadas da cidade, como nos tempos medievais.
- Você seria enforcada por assassinato, se estivéssemos nos tempos medievais. – Toy miou, entediado, quando compartilhei esse pensamento. Imaginei que os Goyle estavam me enforcando, e imediatamente me senti enjoada.
- Ajudou bastante.
- Só estou dizendo que esse pensamento não tem o menor fundamento. Eles são seres humanos normais. Não têm nenhum tipo de clarividência que permita adivinharem quem você é.
- Toy, você não está ajudando a me deixar tranquila!
- Sinto muito. Não sou seu psicólogo.
Bufei e troquei de roupa pela décima vez. Uma buzina quebrou o silêncio, e corri pra janela manchada do meu sótão, só para ver o carro de Sam parado logo em frente.
- Rápido: vermelha ou roxa? – perguntei para Toy, me referindo às cores das roupas que eu tinha provado. Ele saltou de cima do meu criado mudo, desinteressado.
- Não faz diferença. Eu não enxergo cores.
Ele podia ser realmente irritante às vezes!
Sam buzinou de novo, e eu desisti. Calcei um sapato, peguei a bolsa e desci penteando o cabelo. Sem um mínimo de maquiagem – tinha passado tanto tempo me preocupando com o que vestir que não tinha tido tempo para me maquiar – eu estava com uma aparência totalmente fantasmagórica, o que, acreditava eu, não colaboraria em nada para uma primeira impressão. Quando abri a porta da frente, Sam já estava com o dedo a um milímetro da campainha.
- Você demorou. Achei que tivesse desistido. – explicou. Ele sabia tão bem quanto eu quantas vezes aquela possibilidade havia passado pela minha cabeça.
- Eu não conseguia escolher o que vestir. – falei, e me inclinei para beijá-lo. Perdemos alguns minutos ali, até que Sam decidisse que já estávamos atrasados o suficiente. Então subimos no carro e começamos o nosso trajeto em silêncio.
- Pensa pelo lado positivo, você vai conhecer bastante membros da família de uma vez. – Sam disse, em tom de brincadeira – Te poupa novas visitas.
Outros membros da família? Ele não tinha me dito isso!
- Quem vai estar lá? – perguntei, apavorada. Sam pensou por um momento.
- Não muita gente. Só meus dois tios, meu avô e uns poucos amigos dos meus pais. É um jantarzinho simples.
Não me pareceu nada simples. Era um jantar com convidados. Achei que fosse um jantar só pra nós mesmos!
Mas, pensando bem, mais gente significava mais chance de fugir dos pais de Sam. Eles estariam ocupados com outras pessoas, e não poderiam me dar total atenção, o que seria perfeito. É, ia dar tudo certo.
Chegamos na casa dos Goyle poucos minutos depois. Eu estava tremendo, por dentro e por fora. Sam estava tão tranquilo que chegava a me dar agonia. Ele abriu a porta para mim e segurou firme minha mão, como se para dizer que estaria ali pra qualquer coisa. Aquele gesto me fez sentir um pouco mais confiante. E então nós entramos.
A porta da frente dava para uma sala não muito ampla, circular e bem decorada. A lareira estava acesa com um pouco de lenha, tornando o ambiente bastante quente, com cheiro de pinho. Três sofás em tons de marrom e bege estavam colocados em volta de uma mesinha de centro com tampo de vidro, cheia de portas-retrato que, mesmo sem ver, eu sabia conterem fotos de Megan. Na sala, bebendo vinho e conversando animadamente haviam três homens, a quem Sam me apresentou como sendo seu avô paterno, seu tio Lon, e Jerry, colega de escola dos seus pais.
Após olhares estranhos na minha direção – Jerry ficou particularmente impressionado e chegou a quase derrubar sua taça de vinho ao me ver parada atrás dele – e alguns comentários educados sobre como eu era bonita por parte do avô de Sam, fomos em direção à cozinha. Eu ainda podia sentir que me olhavam fixamente enquanto eu andava. Em geral, aquilo não me incomodava, mas agora o peso era diferente. Era da família de Sam que estávamos falando.
- Espero que o Jerry não tenha te ofendido. – ele falou no meu ouvido – Ele é um idiota às vezes, mas é um grande amigo do meu pai.
- Não. Eu já estou acostumada. – tentei sorrir, mas estava nervosa demais. O falatório na cozinha era grande. Um cheiro delicioso de carne assada aumentava à medida que nós nos aproximávamos.
Quando chegamos à porta da cozinha, apertei forte a mão de Sam para buscar a coragem. Mordi o lábio inferior com tanta força que achei que fosse sangrar. O falatório desapareceu no instante em que todos deram conta da minha presença.
As primeiras pessoas que vi foram uma versão mais nova e uma mais velha de Lon – de fato, os três eram tão parecidos que só as rugas e os fios de cabelo branco poderiam definir alguma diferença entre eles. Supus que fossem o outro tio e o pai de Sam, embora eu não soubesse ainda quem era quem. Uma mulher muito alta, de grossos cabelos vermelhos e um mal gosto absoluto para roupas estava logo ao lado. Um casal jovem, cuja mulher estava tão grávida que parecia prestes a explodir, bloqueava a entrada. E, no fogão, estava ela.
Eu soube que era ela a mãe de Sam logo de cara porque nenhuma outra pessoa seria tão semelhante a Megan Goyle. Só de olhar pra ela, tive vontade de vomitar – era como ver uma versão madura de Megan que nunca seria real, como jogar na minha cara o futuro que eu havia tirado dela. Ela estava usando um vestido bonito azul escuro, com um avental por cima tão verde quanto os olhos de Sam. Olhos que ela compartilhava. Olhos que Megan compartilhava em vida.
Sam fez o imenso favor de quebrar o silêncio, a única razão pela qual eu não dei as costas e sai correndo dali naquele exato momento. Ele sorriu como se tudo estivesse perfeitamente natural, soltou minha mão, passando o braço em volta dos meus ombros e me apresentou:
- Pessoal, essa aqui é a Malena, minha namorada.
Nem mesmo o braço dele em volta de mim fez com que eu me sentisse melhor. Sem a mão dele pra segurar, senti que estava começando a tremer, e me perguntei se a minha vontade de chorar estava tão evidente pra eles quanto estava pra mim – os olhos marejados, a boca trêmula, as rugas se formando na testa. Mas eu tinha que ser forte. Eu já havia passado por tanta coisa e ainda estava viva. Nada do que eu fizera tinha sido por mal.
Respirei fundo e comecei a cumprimentar as pessoas. A grávida, Joanna, que era colega de trabalho da mãe do Sam no banco da cidade, e seu marido Joshua. O tio mais novo, Wilbert, e o pai de Sam, Xavier, que me tratou muitíssimo bem e me elogiou tanto que tive até vergonha. A mulher alta, Pamela, madrinha de Sam. E Sandra.
Sandra Goyle. Mãe de Sam. Mãe da garota que eu havia matado há apenas dois meses. Aquela que, no momento, segurava minha vida na mão sem sequer saber disso. Ela me olhou com curiosidade e me abriu um imenso sorriso maternal que eu não tive certeza se consegui retribuir. Então me beijou nas duas bochechas e me deu um abraço longo, dizendo que estava muito feliz por finalmente me conhecer, e como eu era bonita, e como aquele dia era especial.
Tudo acontecia em câmera lenta. Aos poucos, a conversa na cozinha voltou, e eu apenas concordava com praticamente tudo que me era dito. Estava tão assustada que não conseguia prestar atenção a nada, ou pensar antes de responder a uma pergunta. Sam conversou com o tio e com o pai, e me deixou sozinha fingindo um papo com sua família que simplesmente não estava acontecendo. Eles falavam comigo – em especial Sandra, que aparentemente estava tão feliz por eu estar ali que não conseguia prestar atenção em mais nada – e tudo o que eu conseguia fazer era gritar para mim mesma “o que vocês estão fazendo? Eu matei um parente de vocês!”
Mas eles não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém precisava saber. O                                                                que não tornava nada mais fácil, contudo. Para mim, era como se estivesse óbvio, escancarado, uma verdade desagradável que qualquer um podia acessar. Um remorso que estaria ali para sempre.
Foi um alívio quando Sam finalmente me resgatou e me levou dali. Fomos para a sala de jantar, onde a mesa já estava posta. Lá ele me abraçou e me aninhou em seu peito.
- Está tudo bem. – murmurou pra mim – Não foi tão difícil.
Eu não conseguia responder. Estava paralisada. Sam ergueu meu rosto e me olhou com preocupação.
- Lena, diz alguma coisa, ou vou achar que você está entrando em colapso.
Abri a boca, ensaiando algumas palavras, mas não conseguia. Eu queria muito ir embora dali agora mesmo, voltar pra minha casa, pro meu sótão, e ficar escondida onde eles não pudessem me ver. Mas já estava ali. Não tinha como sair agora.
- Eu só estou nervosa. – consegui soltar, finalmente, após alguns minutos.
- Não precisa ficar. – ele me garantiu, e me agarrei com todas as forças nessa certeza – Prometo que nada de ruim vai te acontecer.
Concordei, mas por dentro, ainda estava tremendo. Fomos interrompidos quando Sandra pediu ajuda para colocar a mesa, o que foi ótimo – um pouco de atividade ajudava a aliviar aquela tensão. Consegui carregar o assado até a mesa sem derrubar nada, e em seguida me sentei seguramente ao lado de Sam na mesa – só para descobrir que Sandra se sentaria do meu outro lado.
Antes de começarmos a comer, fui surpreendida por todos dando as mãos em oração. Eu não era uma pessoa religiosa – meu único deus, se podia chamá-lo assim, era o Senhor das Almas, senhor de todas as bruxas. Mas eu seriamente duvidava que pudesse agradecer a ele na mesa de jantar dos Goyle. Principalmente porque todos os meus problemas tinham origem no fato de Ele ter me dado poderes. Não fazia dele meu melhor amigo.
Após uma breve oração para agradecer pela comida, Xavier fez questão de servir vinho a todos – inclusive a mim e Sam. Minha mãe me mataria se soubesse que eu tinha bebido, mas talvez o vinho me ajudasse a ficar mais calma. Então Xavier ergueu sua taça.
- Gostaria de propor um brinde... – ele começou, e alguns na mesa riram. Jerry e Wilbert, para ser mais exata – É, um brinde. Um brinde a uma mulher maravilhosa, com quem eu construi a minha vida, a minha família, e que me fez mais feliz do que eu jamais poderia imaginar. Um brinde aos deliciosos dezenove anos ao lado dela, e um brinde aos filhos que ela me deu.
Meu coração acelerou. Por que ele estava fazendo isso? Por que não podia fazer um brinde ao amor ou à paz mundial? Por que tinha que entrar justamente nesse assunto?
- E um brinde à minha filha querida, que não está mais entre nós. – silêncio. Vi os lábios de Sandra se crisparem numa linha fina, trêmula. Era óbvio que ela estava a um instante de começar a chorar. Não sei se dava pra perceber que eu também estava.
Ninguém disse nada. Fiquei feliz por isso. Por um minuto inteiro, não consegui ouvir nem uma respiração. Decidi não olhar pra nada além do meu próprio prato vazio, imaginando quanto minha cara devia estar parecida com ele – branca, lisa, inexpressiva. Será que ela me denunciava enquanto a assassina horrível que eu era?
- E um brinde à nova filha que entra hoje nessa casa! – Sandra continuou, para meu espanto, e quando a olhei, seus olhos marejados, com algumas lágrimas escorrendo, sorriam pra mim, a taça erguida – Um novo membro pra nossa família, que irá fazer meu filho muito feliz, tenho certeza.
- Saúde. – Sam brindou, antes que alguém pudesse adicionar mais alguma coisa.
Todos brindamos, e esvaziei a minha taça num só gole, tamanha a surpresa. O vinho desceu doído pela minha garganta, deixando minha boca seca logo em seguida. Me senti um pouco tonta, mas isso não impediu que eu aceitasse uma segunda taça de vinho.
O jantar foi finalmente servido, mas eu já estava totalmente sem apetite. Com medo de fazer feio, me forcei a comer. Não demorou até que a conversa recomeçasse, e, consequentemente, que alguém se dirigisse a mim.
- Então, Malena, você não é daqui. – Pamela afirmou, apontando pra mim com o garfo. Pensei rápido no que responder. É fácil, disse pra mim mesma. Só preste atenção e responda, como uma pessoa normal.
- Não, não sou.
- Há quanto tempo se mudou?
- Alguns meses. Meus pais eram daqui.
- Ah, é? Qual o nome deles?
- Milla e Dave Gördon.
- Dave Gördon? Dave Harold Gördon? – ela sorriu, surpresa. Eu assenti, sem entender – Eu namorei seu pai!
Aquilo me deixou um pouco mais tranquila. Levar o assunto pra longe de mim, pros meus pais, e sua vida.
- Nós dois fazíamos educação física juntos, e depois trabalhamos no mesmo restaurante! – contou – Foi assim que começamos a namorar. Meu Deus, faz tanto tempo! E a sua mãe... eu me lembro dela. Lembro de quando ela ficou grávida. Foi um escândalo.
- Ah, foi. – Sandra emendou, o que me surpreendeu mais. Não achei que ela fosse falar mais nada depois do discurso emocionado – Eu não era amiga da sua mãe, mas tinhamos algumas aulas juntas. Algumas mães proibiram as filhas de falarem com ela. Achavam que a sua mãe era um mau exemplo.
- Ah, naquela época tudo era tido como mau exemplo! – Pamela riu alto – Achavam que ficaríamos grávidas por indução! E depois eles se casaram, não foi?
A essa altura, não falavam mais comigo. Enquanto Pamela e Sandra dividiam informações sobre meus pais, continuei a comer, cada vez com menos fome. Meu prato cheio era como um desafio que jamais conseguiria ser vencido. Depois de vários minutos, Sandra finalmente se virou para mim de novo.
- Quantos irmãos você tem, Malena, querida? Porque até onde me lembro, seus pais tinham tido três filhos, e então nunca mais tive notícias deles.
- Somos em sete. – respondi, e as duas me olharam em absoluto choque.
- Sete? – Pamela repetiu, de queixo caído.
- E vocês todos vivem aqui? – Sandra perguntou, ainda surpresa. Fiz que sim - Aonde?
- Na Casa Azul.
Pausa. As duas se entreolharam por um longo momento, como geralmente acontecia toda vez que eu anunciava que morava no lugar mais assombrado da cidade.
Mas, pra minha surpresa, ninguém mudou de assunto, ou fez algum comentário sobre como o lugar era macabro, ou sobre todas as histórias que haviam ouvido sobre a casa enquanto crianças. Pamela me olhou com curiosidade e me lançou a pergunta que ninguém nunca tinha pensado em me fazer.
- E como é lá dentro?
Tive vontade de rir com a pergunta. Era tão inocente – quase infantil. Pensei numa resposta cabível por um minuto ou dois, enquanto brincava com a comida no prato.
- Bom, não tem nada de assustador lá dentro. Não agora, pelo menos.
Não agora que a última bruxa não existe mais, completei mentalmente. Mas ninguém precisava saber dessa parte.
- É verdade que ainda existe sangue seco no sótão? – Pamela parecia uma criança, com olhos brilhantes, perguntando acerca de uma história para um adulto. Chegava a ser cômico.
- Não. Eu durmo no sótão. Não tem nada lá.
- Você dorme no sótão? – Sandra surpreendeu-se novamente – E seus irmãos?
- Eu preferi ficar com o sótão. – expliquei, embora não houvesse nenhuma explicação verdadeira ou plausível do porque eu havia feito aquela escolha. Hoje, pra mim, soava como algo muito lógico – Não haviam quartos suficientes, e o sótão é bastante espaçoso. Virou um quarto bem confortável.
- Que estranho! – Pamela comentou, ao que Sandra concordou. Então ela fez a pergunta que iria arruinar toda a minha noite – E a história das bruxas?
Do meu lado, Sam engasgou com o vinho. O pedaço de carne que eu estava cortando escorregou e foi parar na mesa, fora do prato. Minhas mãos tremiam tanto que não consegui mais segurar os talheres. As luzes piscaram, e, com o canto do olho, vi a garrafa de vinho tremer, mas ninguém pareceu notar além de mim e Sam, que pôs a mão sobre a minha perna. Fiz esforço pra me acalmar. Era eu quem estava causando aquilo? Como poderia?
- Que história? – perguntei, cuidadosamente. Reparei que, de repente, todos se mostravam extremamente interessados na história. Pamela principalmente. Lancei um olhar nervoso a Sam, mas ele não disse nada. A garrafa parou de tremer.
- Bom, você deve ter escutado. Uma das lendas é que moravam bruxas na casa, que juraram vingança, etc, etc. Algumas pessoas juram que elas deixaram coisas na casa. É verdade?
- Ahn... é... não tem nada lá. – menti, tão rápido que me surpreendi por ninguém ter desconfiado. As luzes vacilaram mais algumas vezes. Eu respirei fundo, e elas pararam.
- Nadinha?
- Não.
- Nenhum livro, nenhuma foto?
- Nada. A casa estava vazia quando nos mudamos.
- Que droga!
- São só lendas. – Sam disse, para meu alívio – Eu mesmo já estive lá algumas vezes, e garanto que não tem nada demais.
- Mesmo assim, aquela casa tem alguma coisa de ruim. – Sandra disse, distraidamente – Sabe, uma aura ruim. Eu não sei se conseguiria viver ali. Você é bastante corajosa, Malena.
Agradeci com um sorriso, e rapidamente o assunto se foi. Pude me acalmar e tentar terminar meu jantar, apesar da revolução em que meu estômago havia se tornado. Já era tarde da noite quanto, finalmente, Sam me trouxe de volta pra casa, sã e salva. Estávamos em silêncio no carro, ele dirigindo com seu olhar fixo nas ruas vazias, e eu encarando minhas mãos inquietas.
- Meus pais gostaram muito de você. – Sam comentou, num dado momento, quando já estávamos bem perto de casa. Eu fiz um muxoxo.
- Que bom.
- Eu te falei que ia dar tudo certo, não foi? Tirando o Jerry, que foi meio desagradável, todo mundo te achou...
- Como você consegue? – o interrompi, quase sufocada pela pergunta. Sam virou na minha rua e parou o carro na frente da Casa Azul antes de me responder.
- Consigo o quê?
- Fingir que não aconteceu nada! Ficar comigo depois de tudo! Olhar pra mim! Como você...?
A frase morreu no meio, porque eu não conseguia me expressar direito quando estava quase engasgando de vontade de chorar. Sam me encarou, mudo, por alguns segundos.
Eu estava com aquelas perguntas entaladas havia meses. Eu não duvidava do amor de Sam nem por um segundo, mas não conseguia entender como ele era possível. Eu havia matado a irmã dele! Havia destruído a sua família! Ele devia me odiar, pra dizer o mínimo.
- Lena, presta atenção... – ele bufou – Não foi fácil pra mim no início. Aceitar e perdoar, eu digo. Mas foi quando eu me lembrei direito daquela noite que eu percebi que não podia culpar você.
Acho que a minha cara de ponto de interrogação ficou bastante evidente, porque ele soltou o cinto de segurança e se virou pra mim, de modo a me encarar diretamente nos olhos.
- Foi a Megan quem me seqüestrou aquele dia. – ele continuou – A Kathi estava lá, mas foi ela quem me pegou. Foi ela quem me amarrou, e foi dela a idéia da fogueira. Ela teria me matado se precisasse, Lena. Ela não sentiu nenhuma compaixão, não pensou duas vezes, não questionou. Quem me salvou foi você. Então não me pergunte como eu consigo, ok? Eu seria burro se não conseguisse.
Eu já estava chorando antes mesmo de ele terminar de falar. Nos abraçamos e ficamos assim por alguns minutos, até eu ver a porta da frente ser aberta e meu pai aparecer na varanda, provavelmente se perguntando o que diabos eu estava fazendo naquele carro, na rua, às onze da noite. Dei boa noite a Sam e me preparei para descer, mas ele me segurou pelo braço. Somente pela expressão no seu rosto, já previ o que ele iria me dizer em seguida.
- Malena, você reparou no que aconteceu essa noite? – me perguntou, e percebi o quanto ele estava incomodado só pelo fato de ter dito meu nome ao invés de me chamar pelo apelido.
- O quê? – resolvi me fazer de desentendida. Claro que eu tinha percebido. Estava tão óbvio que eu não sabia como ninguém mais tinha prestado atenção. Mas aquela tinha sido uma noite difícil e eu não queria trazer mais problemas à tona.
- Quando Pamela te perguntou sobre as bruxas. Você se exaltou e...
Foi difícil ficar impassível, e mais difícil ainda mentir para Sam, mas fingi não fazer idéia do que ele estava falando. Fiz de conta que não tinha sido verdade, porque não podia ser. Não era. Era qualquer outra coisa, mas não podia ser aquilo.
- Ah, deixa pra lá. – ele murmurou. Nos despedimos e entrei correndo pra dentro de casa.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Larissa!
A cada capítulo eu fico ainda mais animada. *-*
Accio Coração da Magia!

Adorei este segundo capítulo, nem preciso dizer que você escreve muito bem, não é! ;)

Beijocas.
http://artesaliteraria.blogspot.com.br

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.