O Grande Encontro
- Yara, o
que foi aquilo na hora do almoço? – não resisti perguntar, enquanto eu e ela
andávamos em direção à minha casa. Yara parecia bem apreensiva, mas estava
colaborando.
Ela mordeu
o lábio, e vi seus olhos marejarem. Uma onda de pena me abateu, porque eu não
sabia mais o que fazer por ela. Eu não podia tirar dela a dor do coração
partido. Agora talvez fosse apenas uma questão de tempo. O que era uma droga,
porque a única coisa de que minha amiga realmente precisava era algo que eu não
podia dar.
- Eu não
sei. – suspirou, e ergueu os olhos, como se pra fazer as lágrimas voltarem pra
dentro – Eu só... – deu um riso sem humor pra si mesma – É ridículo, não é?
Essa competição?
-
Desculpe, mas é. – respondi, com toda a honestidade que me cabia. Passei meus
cadernos pro outro braço e passei o braço livre pelos ombros da minha melhor
amiga – Ei. Vai ficar tudo bem.
- Eu
queria que passasse, entende? É fácil entender porque não deu certo, difícil é
só...
- Entender
que ele não sente mais?
Yara
bufou. Meia dúzia de lágrimas já tinham escapado.
- É. –
soltou, por fim.
- É por
isso que hoje, eu e você vamos nos afundar nos números! – eu disse, tentando
soar animada. Não parecia divertido nem pra mim. Ela riu, de qualquer maneira,
então eu fui em frente – Podemos tomar sorvete enquanto você tenta me fazer
entender... qual é mesmo o nome daquela coisa que a gente ta aprendendo?
- Equações
com números fatoriais? – sugeriu, e eu sorri.
- Isso ai!
Você vai entrar em coma depois de hoje!
Ela riu, e
nós seguimos o nosso caminho.
Yara
estava tão apreensiva quando chegamos e entramos em casa que era possível ler o
medo estampado em sua testa, mesmo que ela tentasse esconder com uma expressão
tranqüila. Imaginei como ela agiria se eu a levasse para o sótão, meu quarto,
local onde o passado tenebroso daquela casa realmente havia se concretizado.
Ela era uma pessoa sensível. Tanto que eu não conseguia entender como não tinha
sentido a bruxa que há – havia – em mim.
Afinal,
ela tinha medo de Kathi. Ela mantinha distância de todas as pessoas na
minúscula Oxford que tinham alguma coisa a ver com toda essa história de
bruxas. Yara deveria correr de mim também. Ou talvez ela só não sentisse porque
eu não era realmente uma antes de reconhecer Dorothi em mim. Ou simplesmente
porque eu não representava perigo.
A quem eu
estava querendo enganar? Eu tinha matado duas garotas numa única noite. Eu
representava perigo sim.
Nos
sentamos na sala, onde Yara observava tudo com cuidado, como se esperasse que o
bicho papão saísse de repente da lareira ou alguma coisa assim. Mamãe apareceu,
vindo da cozinha, com um pano de prato nos ombros.
- Boa
tarde, meninas! – exclamou, abrindo o sorriso que eu sempre via quando me
olhava no espelho num dia feliz – Yara! Como vai?
- Tudo bem
comigo, Sra. Gördon, e com a senhora? – Yara respondeu, educadamente e tentando
fingir que não estava apavorada.
- Eu estou
ótima! – respirou fundo – Precisam de alguma coisa?
Yara já ia
dizer que não, obrigada, mas eu sabia exatamente do que ela precisava. E, de
certa forma, eu também.
- Pode nos
fazer um chá de camomila, mãe? – eu pedi, e mamãe assentiu, devagar.
- Claro. –
concordou – Volto logo!
Mal ela
saiu, Yara já estava me fuzilando enquanto pegava os cadernos.
- Não
precisava dar trabalho pra sua mãe! – Yara afirmou – Eu já estou melhor!
- Não seja
boba, é só um chá! – rolei os olhos – Minha mãe não vai morrer por causa de um
chá!
Ela não
parecia convencida. Mesmo assim, pegamos todos os nossos itens de estudo e
começamos a operação Números Fatoriais!
Minha mãe
voltou com o chá, e isso ajudou um pouco a acalmar os ânimos. Depois de meia
hora, Yara já estava tão absolutamente entretida em tentar me fazer entender a
matéria, que já tinha deixado de lado quase todo o seu medo sobre a casa – quase. Ela ainda olhava por cima do
ombro de minuto em minuto esperando que algo pulasse em cima dela. Mas estava
fazendo o possível para se manter calma.
Já estávamos
naquilo a duas horas, e minha cabeça doía com o excesso de informação. Tinha
repassado a matéria duas vezes, e estava fazendo pela terceira vez os
exercícios que eu tinha errado. Yara estava comparando a minha prova com a dela
– a diferença entre um A e um D eram gritantes e óbvias. Fui salva por breves
segundos quando meu celular emitiu um alerta de mensagem.
“Jantar aqui, hoje. Aniversário de casamento
dos meus pais. Não aceito não como resposta.”
Aquilo
bastou pra que toda a camomila fosse imediatamente eliminada do meu sistema
nervoso e eu começasse a suar. Hoje? Como assim hoje? Por que ele não tinha me
avisado nada antes? Por que ele estava fazendo aquilo comigo?
- Malena,
o que foi? – Yara percebeu. Acho que eu estava ficando meio verde; afinal,
seria impossível ficar mais pálida.
- Não é
nada. – respondi, mas minha incapacidade de piscar os olhos e minha voz
atravessada na garganta rapidamente denunciaram o contrário. Yara pôs os livros
de lado e pegou o celular. Leu a mensagem e me lançou um olhar de repreensão.
- Ainda
essa história?
Yara sabia
de parte dos fatos. Sabia que eu estava me recusando terminantemente a conhecer
a família de Sam. Sabia que eu estava em pânico. Sabia que Sam queria muito que
eu conhecesse seus pais. Só não sabia qual era o grande mistério por trás
daquele drama todo.
- Você não
entende. – falei, quase chorando. E ela não entendia mesmo. Nem Sam, por mais
absurdo que pudesse parecer, entendia. Ele estava me levando direto pra boca do
tubarão!
- Não
entendo mesmo, porque você não me explica! – Yara me devolveu o celular, que eu
peguei com mãos trêmulas – Você está sendo boba! Não tem do que ter medo! Os
pais dele não vão te trucidar nem nada do tipo!
Não vão
porque não sabem da verdade. Mas eu sabia da verdade. Eu estaria me trucidando
sozinha.
- Aposto
que você já enfrentou coisa muito pior que um jantar de bodas na sua vida! –
ela continuou, e eu me segurei nesse pensamento enquanto ela falava.
E não era
verdade, afinal?
Não sabia
a que exatamente Yara estava se referindo – já que boa parte das coisas
realmente difíceis e terríveis que eu tinha enfrentado na vida não era de
conhecimento geral -, mas ela estava certa. Eu já tinha enfrentado coisa muito
pior. Já tinha enfrentado preconceito, já tinha crescido com sete homens
(contando meu pai) cuidando de mim, já tinha me mudado bruscamente, descoberto
que era uma bruxa, feito feitiços, tirado vidas. Já tinha feito tantas coisas
difíceis, já tinha enfrentado tantos momentos de medo, que dificilmente algo
poderia me assustar.
Exceto a
expectativa de me encontrar com duas pessoas que não sabiam realmente quem eu
era, nem minha relação com o pior drama de suas vidas. Mesmo que, secretamente,
eu tivesse, na verdade, os salvado. Eles não sabiam disso. Assim como não
sabiam que eu tinha matado Megan.
Eu não
acreditava nem por um segundo que estivesse sendo boba. Meu medo era real, e
tinha a ver com culpa e muito remorso pela dor dos Goyle. Mas Yara estava
certa, eu podia passar por isso. E antes agora do que quando não houvesse mais
como adiar.
- Tem
razão, né? – falei, devagar. Tive a impressão de que ela tinha me dado um
sermão enorme, mas que eu não havia escutado uma palavra sequer. Mas só o fato
de eu admitir que ela estava certa já fez Yara sorrir.
- Claro
que tenho. – ela passou a mão carinhosamente pelos meus cabelos, com um olhar
fraternal – Agora responda pra ele que está combinado, e crie coragem.
Coragem.
Ia precisar de muito mais que coragem. Ia precisar de uma sorte que não era
típica de mim.
Com os
dedos trêmulos, respondi um simples “tudo bem”. Ia bastar. Tentei continuar
estudando depois disso, mas simplesmente não funcionou. Eu tinha algo muito
mais urgente com que me preocupar agora – o maior e menos ansiado encontro de
toda a minha vida.
Mal
consegui falar com Sam depois disso. Me sentia um pouco traída por ele ter me
forçado aquele encontro de uma maneira tão brusca. Achava que ele, de todas as
pessoas, entenderia porque eu precisava de tempo. Ao invés disso, estava me
forçando a pular do penhasco, mesmo sabendo que eu estava apavorada com a
altura. Uma tremenda facada nas costas.
Mesmo
assim, eu não conseguia ficar brava com ele. A decisão estava tomada, e eu
estava confiante de que não voltaria atrás. Minhas mãos suavam e meu coração
batia forte só de pensar no que me aguardaria naquela noite. Na minha cabeça,
eu ainda tinha formada aquela imagem louca de que eles me reconheceriam como
assassina no mesmo instante em que eu aparecesse, e me expulsariam com tochas e
forcadas da cidade, como nos tempos medievais.
- Você
seria enforcada por assassinato, se estivéssemos nos tempos medievais. – Toy
miou, entediado, quando compartilhei esse pensamento. Imaginei que os Goyle
estavam me enforcando, e imediatamente me senti enjoada.
- Ajudou
bastante.
- Só estou
dizendo que esse pensamento não tem o menor fundamento. Eles são seres humanos
normais. Não têm nenhum tipo de clarividência que permita adivinharem quem você
é.
- Toy,
você não está ajudando a me deixar tranquila!
- Sinto
muito. Não sou seu psicólogo.
Bufei e
troquei de roupa pela décima vez. Uma buzina quebrou o silêncio, e corri pra
janela manchada do meu sótão, só para ver o carro de Sam parado logo em frente.
- Rápido:
vermelha ou roxa? – perguntei para Toy, me referindo às cores das roupas que eu
tinha provado. Ele saltou de cima do meu criado mudo, desinteressado.
- Não faz
diferença. Eu não enxergo cores.
Ele podia
ser realmente irritante às vezes!
Sam
buzinou de novo, e eu desisti. Calcei um sapato, peguei a bolsa e desci
penteando o cabelo. Sem um mínimo de maquiagem – tinha passado tanto tempo me
preocupando com o que vestir que não tinha tido tempo para me maquiar – eu
estava com uma aparência totalmente fantasmagórica, o que, acreditava eu, não
colaboraria em nada para uma primeira impressão. Quando abri a porta da frente,
Sam já estava com o dedo a um milímetro da campainha.
- Você
demorou. Achei que tivesse desistido. – explicou. Ele sabia tão bem quanto eu
quantas vezes aquela possibilidade havia passado pela minha cabeça.
- Eu não
conseguia escolher o que vestir. – falei, e me inclinei para beijá-lo. Perdemos
alguns minutos ali, até que Sam decidisse que já estávamos atrasados o
suficiente. Então subimos no carro e começamos o nosso trajeto em silêncio.
- Pensa
pelo lado positivo, você vai conhecer bastante membros da família de uma vez. –
Sam disse, em tom de brincadeira – Te poupa novas visitas.
Outros
membros da família? Ele não tinha me dito isso!
- Quem vai
estar lá? – perguntei, apavorada. Sam pensou por um momento.
- Não
muita gente. Só meus dois tios, meu avô e uns poucos amigos dos meus pais. É um
jantarzinho simples.
Não me
pareceu nada simples. Era um jantar com convidados. Achei que fosse um jantar
só pra nós mesmos!
Mas,
pensando bem, mais gente significava mais chance de fugir dos pais de Sam. Eles
estariam ocupados com outras pessoas, e não poderiam me dar total atenção, o
que seria perfeito. É, ia dar tudo certo.
Chegamos
na casa dos Goyle poucos minutos depois. Eu estava tremendo, por dentro e por
fora. Sam estava tão tranquilo que chegava a me dar agonia. Ele abriu a porta
para mim e segurou firme minha mão, como se para dizer que estaria ali pra
qualquer coisa. Aquele gesto me fez sentir um pouco mais confiante. E então nós
entramos.
A porta da
frente dava para uma sala não muito ampla, circular e bem decorada. A lareira
estava acesa com um pouco de lenha, tornando o ambiente bastante quente, com
cheiro de pinho. Três sofás em tons de marrom e bege estavam colocados em volta
de uma mesinha de centro com tampo de vidro, cheia de portas-retrato que, mesmo
sem ver, eu sabia conterem fotos de Megan. Na sala, bebendo vinho e conversando
animadamente haviam três homens, a quem Sam me apresentou como sendo seu avô
paterno, seu tio Lon, e Jerry, colega de escola dos seus pais.
Após
olhares estranhos na minha direção – Jerry ficou particularmente impressionado
e chegou a quase derrubar sua taça de vinho ao me ver parada atrás dele – e
alguns comentários educados sobre como eu era bonita por parte do avô de Sam,
fomos em direção à cozinha. Eu ainda podia sentir que me olhavam fixamente
enquanto eu andava. Em geral, aquilo não me incomodava, mas agora o peso era
diferente. Era da família de Sam que estávamos falando.
- Espero
que o Jerry não tenha te ofendido. – ele falou no meu ouvido – Ele é um idiota
às vezes, mas é um grande amigo do meu pai.
- Não. Eu
já estou acostumada. – tentei sorrir, mas estava nervosa demais. O falatório na
cozinha era grande. Um cheiro delicioso de carne assada aumentava à medida que
nós nos aproximávamos.
Quando
chegamos à porta da cozinha, apertei forte a mão de Sam para buscar a coragem.
Mordi o lábio inferior com tanta força que achei que fosse sangrar. O falatório
desapareceu no instante em que todos deram conta da minha presença.
As
primeiras pessoas que vi foram uma versão mais nova e uma mais velha de Lon –
de fato, os três eram tão parecidos que só as rugas e os fios de cabelo branco
poderiam definir alguma diferença entre eles. Supus que fossem o outro tio e o
pai de Sam, embora eu não soubesse ainda quem era quem. Uma mulher muito alta,
de grossos cabelos vermelhos e um mal gosto absoluto para roupas estava logo ao
lado. Um casal jovem, cuja mulher estava tão grávida que parecia prestes a
explodir, bloqueava a entrada. E, no fogão, estava ela.
Eu soube
que era ela a mãe de Sam logo de cara porque nenhuma outra pessoa seria tão
semelhante a Megan Goyle. Só de olhar pra ela, tive vontade de vomitar – era
como ver uma versão madura de Megan que nunca seria real, como jogar na minha
cara o futuro que eu havia tirado dela. Ela estava usando um vestido bonito
azul escuro, com um avental por cima tão verde quanto os olhos de Sam. Olhos
que ela compartilhava. Olhos que Megan compartilhava em vida.
Sam fez o
imenso favor de quebrar o silêncio, a única razão pela qual eu não dei as costas
e sai correndo dali naquele exato momento. Ele sorriu como se tudo estivesse
perfeitamente natural, soltou minha mão, passando o braço em volta dos meus
ombros e me apresentou:
- Pessoal,
essa aqui é a Malena, minha namorada.
Nem mesmo
o braço dele em volta de mim fez com que eu me sentisse melhor. Sem a mão dele
pra segurar, senti que estava começando a tremer, e me perguntei se a minha
vontade de chorar estava tão evidente pra eles quanto estava pra mim – os olhos
marejados, a boca trêmula, as rugas se formando na testa. Mas eu tinha que ser
forte. Eu já havia passado por tanta coisa e ainda estava viva. Nada do que eu
fizera tinha sido por mal.
Respirei
fundo e comecei a cumprimentar as pessoas. A grávida, Joanna, que era colega de
trabalho da mãe do Sam no banco da cidade, e seu marido Joshua. O tio mais
novo, Wilbert, e o pai de Sam, Xavier, que me tratou muitíssimo bem e me
elogiou tanto que tive até vergonha. A mulher alta, Pamela, madrinha de Sam. E
Sandra.
Sandra
Goyle. Mãe de Sam. Mãe da garota que eu havia matado há apenas dois meses.
Aquela que, no momento, segurava minha vida na mão sem sequer saber disso. Ela
me olhou com curiosidade e me abriu um imenso sorriso maternal que eu não tive
certeza se consegui retribuir. Então me beijou nas duas bochechas e me deu um
abraço longo, dizendo que estava muito feliz por finalmente me conhecer, e como
eu era bonita, e como aquele dia era especial.
Tudo
acontecia em câmera lenta. Aos poucos, a conversa na cozinha voltou, e eu
apenas concordava com praticamente tudo que me era dito. Estava tão assustada
que não conseguia prestar atenção a nada, ou pensar antes de responder a uma
pergunta. Sam conversou com o tio e com o pai, e me deixou sozinha fingindo um
papo com sua família que simplesmente não estava acontecendo. Eles falavam
comigo – em especial Sandra, que aparentemente estava tão feliz por eu estar
ali que não conseguia prestar atenção em mais nada – e tudo o que eu conseguia
fazer era gritar para mim mesma “o que vocês estão fazendo? Eu matei um parente
de vocês!”
Mas eles
não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém precisava saber. O que
não tornava nada mais fácil, contudo. Para mim, era como se estivesse óbvio,
escancarado, uma verdade desagradável que qualquer um podia acessar. Um remorso
que estaria ali para sempre.
Foi um
alívio quando Sam finalmente me resgatou e me levou dali. Fomos para a sala de
jantar, onde a mesa já estava posta. Lá ele me abraçou e me aninhou em seu
peito.
- Está
tudo bem. – murmurou pra mim – Não foi tão difícil.
Eu não
conseguia responder. Estava paralisada. Sam ergueu meu rosto e me olhou com
preocupação.
- Lena,
diz alguma coisa, ou vou achar que você está entrando em colapso.
Abri a
boca, ensaiando algumas palavras, mas não conseguia. Eu queria muito ir embora
dali agora mesmo, voltar pra minha casa, pro meu sótão, e ficar escondida onde
eles não pudessem me ver. Mas já estava ali. Não tinha como sair agora.
- Eu só
estou nervosa. – consegui soltar, finalmente, após alguns minutos.
- Não
precisa ficar. – ele me garantiu, e me agarrei com todas as forças nessa
certeza – Prometo que nada de ruim vai te acontecer.
Concordei,
mas por dentro, ainda estava tremendo. Fomos interrompidos quando Sandra pediu
ajuda para colocar a mesa, o que foi ótimo – um pouco de atividade ajudava a aliviar
aquela tensão. Consegui carregar o assado até a mesa sem derrubar nada, e em
seguida me sentei seguramente ao lado de Sam na mesa – só para descobrir que
Sandra se sentaria do meu outro lado.
Antes de
começarmos a comer, fui surpreendida por todos dando as mãos em oração. Eu não
era uma pessoa religiosa – meu único deus, se podia chamá-lo assim, era o
Senhor das Almas, senhor de todas as bruxas. Mas eu seriamente duvidava que
pudesse agradecer a ele na mesa de jantar dos Goyle. Principalmente porque
todos os meus problemas tinham origem no fato de Ele ter me dado poderes. Não
fazia dele meu melhor amigo.
Após uma
breve oração para agradecer pela comida, Xavier fez questão de servir vinho a
todos – inclusive a mim e Sam. Minha mãe me mataria se soubesse que eu tinha
bebido, mas talvez o vinho me ajudasse a ficar mais calma. Então Xavier ergueu
sua taça.
- Gostaria
de propor um brinde... – ele começou, e alguns na mesa riram. Jerry e Wilbert,
para ser mais exata – É, um brinde. Um brinde a uma mulher maravilhosa, com
quem eu construi a minha vida, a minha família, e que me fez mais feliz do que
eu jamais poderia imaginar. Um brinde aos deliciosos dezenove anos ao lado
dela, e um brinde aos filhos que ela me deu.
Meu
coração acelerou. Por que ele estava fazendo isso? Por que não podia fazer um
brinde ao amor ou à paz mundial? Por que tinha que entrar justamente nesse
assunto?
- E um
brinde à minha filha querida, que não está mais entre nós. – silêncio. Vi os
lábios de Sandra se crisparem numa linha fina, trêmula. Era óbvio que ela
estava a um instante de começar a chorar. Não sei se dava pra perceber que eu
também estava.
Ninguém
disse nada. Fiquei feliz por isso. Por um minuto inteiro, não consegui ouvir
nem uma respiração. Decidi não olhar pra nada além do meu próprio prato vazio,
imaginando quanto minha cara devia estar parecida com ele – branca, lisa,
inexpressiva. Será que ela me denunciava enquanto a assassina horrível que eu
era?
- E um
brinde à nova filha que entra hoje nessa casa! – Sandra continuou, para meu
espanto, e quando a olhei, seus olhos marejados, com algumas lágrimas
escorrendo, sorriam pra mim, a taça erguida – Um novo membro pra nossa família,
que irá fazer meu filho muito feliz, tenho certeza.
- Saúde. –
Sam brindou, antes que alguém pudesse adicionar mais alguma coisa.
Todos
brindamos, e esvaziei a minha taça num só gole, tamanha a surpresa. O vinho
desceu doído pela minha garganta, deixando minha boca seca logo em seguida. Me
senti um pouco tonta, mas isso não impediu que eu aceitasse uma segunda taça de
vinho.
O jantar
foi finalmente servido, mas eu já estava totalmente sem apetite. Com medo de
fazer feio, me forcei a comer. Não demorou até que a conversa recomeçasse, e,
consequentemente, que alguém se dirigisse a mim.
- Então,
Malena, você não é daqui. – Pamela afirmou, apontando pra mim com o garfo.
Pensei rápido no que responder. É fácil, disse pra mim mesma. Só preste atenção
e responda, como uma pessoa normal.
- Não, não
sou.
- Há
quanto tempo se mudou?
- Alguns
meses. Meus pais eram daqui.
- Ah, é?
Qual o nome deles?
- Milla e Dave Gördon.
- Dave Gördon? Dave
Harold Gördon? – ela sorriu, surpresa. Eu assenti, sem entender – Eu namorei
seu pai!
Aquilo me
deixou um pouco mais tranquila. Levar o assunto pra longe de mim, pros meus pais,
e sua vida.
- Nós dois
fazíamos educação física juntos, e depois trabalhamos no mesmo restaurante! –
contou – Foi assim que começamos a namorar. Meu Deus, faz tanto tempo! E a sua
mãe... eu me lembro dela. Lembro de quando ela ficou grávida. Foi um escândalo.
- Ah, foi.
– Sandra emendou, o que me surpreendeu mais. Não achei que ela fosse falar mais
nada depois do discurso emocionado – Eu não era amiga da sua mãe, mas tinhamos
algumas aulas juntas. Algumas mães proibiram as filhas de falarem com ela. Achavam
que a sua mãe era um mau exemplo.
- Ah,
naquela época tudo era tido como mau exemplo! – Pamela riu alto – Achavam que
ficaríamos grávidas por indução! E depois eles se casaram, não foi?
A essa
altura, não falavam mais comigo. Enquanto Pamela e Sandra dividiam informações
sobre meus pais, continuei a comer, cada vez com menos fome. Meu prato cheio era
como um desafio que jamais conseguiria ser vencido. Depois de vários minutos,
Sandra finalmente se virou para mim de novo.
- Quantos
irmãos você tem, Malena, querida? Porque até onde me lembro, seus pais tinham
tido três filhos, e então nunca mais tive notícias deles.
- Somos em
sete. – respondi, e as duas me olharam em absoluto choque.
- Sete? –
Pamela repetiu, de queixo caído.
- E vocês
todos vivem aqui? – Sandra perguntou, ainda surpresa. Fiz que sim - Aonde?
- Na Casa
Azul.
Pausa. As
duas se entreolharam por um longo momento, como geralmente acontecia toda vez
que eu anunciava que morava no lugar mais assombrado da cidade.
Mas, pra
minha surpresa, ninguém mudou de assunto, ou fez algum comentário sobre como o
lugar era macabro, ou sobre todas as histórias que haviam ouvido sobre a casa
enquanto crianças. Pamela me olhou com curiosidade e me lançou a pergunta que
ninguém nunca tinha pensado em me fazer.
- E como é
lá dentro?
Tive
vontade de rir com a pergunta. Era tão inocente – quase infantil. Pensei numa
resposta cabível por um minuto ou dois, enquanto brincava com a comida no
prato.
- Bom, não
tem nada de assustador lá dentro. Não agora, pelo menos.
Não agora
que a última bruxa não existe mais, completei mentalmente. Mas ninguém
precisava saber dessa parte.
- É
verdade que ainda existe sangue seco no sótão? – Pamela parecia uma criança,
com olhos brilhantes, perguntando acerca de uma história para um adulto.
Chegava a ser cômico.
- Não. Eu
durmo no sótão. Não tem nada lá.
- Você
dorme no sótão? – Sandra surpreendeu-se novamente – E seus irmãos?
- Eu
preferi ficar com o sótão. – expliquei, embora não houvesse nenhuma explicação
verdadeira ou plausível do porque eu havia feito aquela escolha. Hoje, pra mim,
soava como algo muito lógico – Não haviam quartos suficientes, e o sótão é
bastante espaçoso. Virou um quarto bem confortável.
- Que
estranho! – Pamela comentou, ao que Sandra concordou. Então ela fez a pergunta
que iria arruinar toda a minha noite – E a história das bruxas?
Do meu
lado, Sam engasgou com o vinho. O pedaço de carne que eu estava cortando
escorregou e foi parar na mesa, fora do prato. Minhas mãos tremiam tanto que
não consegui mais segurar os talheres. As luzes piscaram, e, com o canto do
olho, vi a garrafa de vinho tremer, mas ninguém pareceu notar além de mim e
Sam, que pôs a mão sobre a minha perna. Fiz esforço pra me acalmar. Era eu quem
estava causando aquilo? Como poderia?
- Que
história? – perguntei, cuidadosamente. Reparei que, de repente, todos se
mostravam extremamente interessados na história. Pamela principalmente. Lancei
um olhar nervoso a Sam, mas ele não disse nada. A garrafa parou de tremer.
- Bom,
você deve ter escutado. Uma das lendas é que moravam bruxas na casa, que
juraram vingança, etc, etc. Algumas pessoas juram que elas deixaram coisas na
casa. É verdade?
- Ahn...
é... não tem nada lá. – menti, tão rápido que me surpreendi por ninguém ter
desconfiado. As luzes vacilaram mais algumas vezes. Eu respirei fundo, e elas
pararam.
- Nadinha?
- Não.
- Nenhum
livro, nenhuma foto?
- Nada. A
casa estava vazia quando nos mudamos.
- Que
droga!
- São só
lendas. – Sam disse, para meu alívio – Eu mesmo já estive lá algumas vezes, e
garanto que não tem nada demais.
- Mesmo
assim, aquela casa tem alguma coisa de ruim. – Sandra disse, distraidamente –
Sabe, uma aura ruim. Eu não sei se conseguiria viver ali. Você é bastante
corajosa, Malena.
Agradeci
com um sorriso, e rapidamente o assunto se foi. Pude me acalmar e tentar
terminar meu jantar, apesar da revolução em que meu estômago havia se tornado.
Já era tarde da noite quanto, finalmente, Sam me trouxe de volta pra casa, sã e
salva. Estávamos em silêncio no carro, ele dirigindo com seu olhar fixo nas
ruas vazias, e eu encarando minhas mãos inquietas.
- Meus
pais gostaram muito de você. – Sam comentou, num dado momento, quando já
estávamos bem perto de casa. Eu fiz um muxoxo.
- Que bom.
- Eu te
falei que ia dar tudo certo, não foi? Tirando o Jerry, que foi meio
desagradável, todo mundo te achou...
- Como
você consegue? – o interrompi, quase sufocada pela pergunta. Sam virou na minha
rua e parou o carro na frente da Casa Azul antes de me responder.
- Consigo
o quê?
- Fingir
que não aconteceu nada! Ficar comigo depois de tudo! Olhar pra mim! Como
você...?
A frase
morreu no meio, porque eu não conseguia me expressar direito quando estava
quase engasgando de vontade de chorar. Sam me encarou, mudo, por alguns
segundos.
Eu estava
com aquelas perguntas entaladas havia meses. Eu não duvidava do amor de Sam nem
por um segundo, mas não conseguia entender como ele era possível. Eu havia
matado a irmã dele! Havia destruído a sua família! Ele devia me odiar, pra
dizer o mínimo.
- Lena,
presta atenção... – ele bufou – Não foi fácil pra mim no início. Aceitar e
perdoar, eu digo. Mas foi quando eu me lembrei direito daquela noite que eu
percebi que não podia culpar você.
Acho que a
minha cara de ponto de interrogação ficou bastante evidente, porque ele soltou
o cinto de segurança e se virou pra mim, de modo a me encarar diretamente nos
olhos.
- Foi a
Megan quem me seqüestrou aquele dia. – ele continuou – A Kathi estava lá, mas
foi ela quem me pegou. Foi ela quem me amarrou, e foi dela a idéia da fogueira.
Ela teria me matado se precisasse, Lena. Ela não sentiu nenhuma compaixão, não
pensou duas vezes, não questionou. Quem me salvou foi você. Então não me
pergunte como eu consigo, ok? Eu seria burro se não conseguisse.
Eu já
estava chorando antes mesmo de ele terminar de falar. Nos abraçamos e ficamos
assim por alguns minutos, até eu ver a porta da frente ser aberta e meu pai
aparecer na varanda, provavelmente se perguntando o que diabos eu estava
fazendo naquele carro, na rua, às onze da noite. Dei boa noite a Sam e me
preparei para descer, mas ele me segurou pelo braço. Somente pela expressão no
seu rosto, já previ o que ele iria me dizer em seguida.
- Malena,
você reparou no que aconteceu essa noite? – me perguntou, e percebi o quanto
ele estava incomodado só pelo fato de ter dito meu nome ao invés de me chamar
pelo apelido.
- O quê? –
resolvi me fazer de desentendida. Claro que eu tinha percebido. Estava tão
óbvio que eu não sabia como ninguém mais tinha prestado atenção. Mas aquela
tinha sido uma noite difícil e eu não queria trazer mais problemas à tona.
- Quando
Pamela te perguntou sobre as bruxas. Você se exaltou e...
Foi
difícil ficar impassível, e mais difícil ainda mentir para Sam, mas fingi não
fazer idéia do que ele estava falando. Fiz de conta que não tinha sido verdade,
porque não podia ser. Não era. Era qualquer outra coisa, mas não podia ser
aquilo.
- Ah,
deixa pra lá. – ele murmurou. Nos despedimos e entrei correndo pra dentro de
casa.
3 comentários:
Oi Larissa!
A cada capítulo eu fico ainda mais animada. *-*
Accio Coração da Magia!
Adorei este segundo capítulo, nem preciso dizer que você escreve muito bem, não é! ;)
Beijocas.
http://artesaliteraria.blogspot.com.br
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